Sem título
Luiz Fernando Ramos
Realidades da política ou políticas do real. Na ambiguidade incrustada nessas duas possibilidades de leitura de Terra Tu Pátria moram a estranheza, a beleza e as limitações da encenação. Há um impasse entre discursos reais, postos como documentos e “fielmente” reapresentados em cena, e enunciações líricas e analíticas derivadas, como posicionamento ético e estético do grupo frente ao estado de coisas no Brasil. Esta tensão é sempre mantida e nutre o espetáculo. De fato, não se trata ali de buscar soluções, sínteses, ou catarses, ainda que pela própria impossibilidade de clarificação se busque alívio, porque o fundo do poço é um país escuro e frio. De algum modo, a dificuldade dos criadores para responderem ética e esteticamente às circunstâncias brasileiras presentes reverbera na impotência do espetáculo em dar conta das expectativas do espectador, um que esperasse a partir daquele que alguma coisa se clarificasse. Não é certamente o “teatro político,” que explica e quer encaminhar, nem tampouco a cena autônoma, pretensa pulsão do real como imanência. Entre essas duas variáveis extremas alcança-se um lugar ambíguo mas singular, e cenicamente impactante, em que a perplexidade dos enunciadores é compartilhada com o público e por este experimentada. Entre rasgos poéticos intensos e provocantes observações analíticas, não resta porto seguro, mas, apenas, a busca honesta no vazio da realidade pela invenção e pelo sublime nas circunstâncias atuais adversas. O primeiro achado, que empuxa a encenação na decolagem, é o formato inicial de cantata, coro de vozes orquestrado rítmica e cromaticamente. Em frente às suas estantes e partituras os “cantores” entoam os discursos reais de histórica sessão da Câmara Federal, a que votou o impeachment de Dilma Roussef. Os conteúdos dos discursos, bem como sua inclinação política e resultante na votação são já conhecidos, mas a forma musical de sua articulação, o deslocamento dos sentidos originais ao plano lúdico e distanciado em que são postos, opera para nivelá-los como matéria dramática. Mesmo assim, o tratamento homogêneo não deixa de se trair, tanto na seleção como no modo enunciativo. O esforço performativo dos atuantes incorpora sutilmente suas próprias convicções, o que garante, para além de qualquer maneirismo, a integridade das ações realizadas. E já neste início impõem-se o problema que a encenação enfrenta e, por suas próprias escolhas, termina por não resolver. A questão central em Terra Tu Pátria é como lidar, diante dos elementos nus e crus colhidos da realidade, com a questão essencialmente política de um posicionamento claro frente a polaridade de lados adversos. Não que a ojeriza à extrema direita não se explicite em gestos, olhares e corpos. Ocorre que há uma ambição estética, associada a um posicionamento ético, que impede o deslizamento necessário à leitura convencional de esquerda. Definitivamente não se incorre em maniqueísmo e há quase um pudor em simplificar os fatos com conclusões peremptórias. Ao contrário, como já se sugeriu, há um convívio permanente com o impasse, como se este traço formalizado almejasse conseguir apresentar o próprio nó górdio histórico em que o Brasil se percebeu depois da eleição de Jair Bolsonaro. Os traços dessa opção construtiva, na tensão permanente entre fatos e versões, aparecem ao longo de todas as cenas. Por exemplo, no longo processo poético analítico de exame de duas fotos, simétricas mas distintas, de Lula sendo rodeado por uma multidão poucas horas ante de ser preso. Exemplarmente ali explicita-se na forma da encenação o X do problema brasileiro. O que fazer com Lula? Preservá-lo como dínamo e eixo de todas as expectativas progressistas ou aceitar sua retirada do jogo, mesmo na base do tapetão e da trapaça, reconhecendo que seu ciclo de liderança se esgotou. Os dados objetivos são apresentados em registro documentário, mas logo a cena se expande em discurso poético apocalíptico intensificando a impossibilidade de solução do problema e a radicalidade da proposição estética. Outro exemplo, em cena anterior que sucede as narrações do impeachment e do escândalo do governo Temer, a mesma dramaturgia lírico alucinada alcança potência transfiguradora notável, projetando muito além do binarismo político básico, em tom de distopia, os acontecimentos. Um embate escatológico entre Dilma e Temer na arena do Congresso nacional surge como ícone derrisório da farsa da política em sentido lato, sem inocentes e sem vencedores. São esses momentos de intensificação do patético da cena nacional, muito além do realismo mas, paradoxalmente, partindo dos ossos do real, ou das entranhas da “realpolitik”, que legitimam o espetáculo afinal e o tornam relevante. Outra seção a destacar, interessante pela engenhosidade do dispositivo mas menos produtiva para o núcleo duro da encenação, é a superposição dos discursos de derrotas políticas e futebolísticas. É, propriamente uma incisão frívola, em que o lúdico não se catapulta ao poético e rebaixa-se à crônica ligeira. Na verdade, a proposição de interação entre atores e projeções espalha-se por todo o espetáculo com resultados cênicos mais e menos felizes, mas inegável organicidade dramatúrgica. Finalmente, há que ressaltar o dispositivo estruturante de documentos interagidos como o modal do andamento e das variações, entre performativas e dramáticas, da narrativa. Nessa perspectiva o espetáculo apresentado no dia 24 de setembro de 2019, que aproveitou o desde já histórico discurso de Bolsonaro na ONU, para pô-lo em tensão no corpo de um ator com outras falas antológicas do presidente, testou favoravelmente aquele dispositivo e sua flexibilidade de absorver qualquer documento ou discurso a qualquer hora. Com efeito, aquela apresentação potencializou o tom de urgência que a encenação quer propagar aproximando-a da vivacidade da performance, mesmo quando a repetição fosse seu mote principal ou seu procedimento fundador. Quase como um “teatro jornal” sem teatro, ou drama, em carne viva e sem mediação ideológica. O desfecho singelo e lírico, delicado e otimista, à base de vagalumes e analogias banais, é uma ironia desconcertante, compatível com o beco sem saída em que o país se encontra e onde o próprio espetáculo habita.
Terra tus ojos
André Goldfeder
O teatro faz os discursos girarem. Na verdade, faz muito mais que isso, em todas as direções, pois o ato de encenar tem como vocação fundar, em cada encenação, o próprio lugar do teatro. De todo modo, pôr em cena é colocar uma espécie de tela diante da fala. O simples fato de a fala teatral se mostrar a partir de uma moldura reconhecida enquanto tal pelo espectador a coloca em um espaço de suspensão e perspectivação.
Mesmo que se trate abertamente de uma ficção e a menos que se trate não de teatro, mas de uma conferência acadêmica (situação, aliás, muito bem explorada no recente Colônia, de Gustavo Colombini), o teatro interpõe uma tela entre a fala e o campo natural de sua efetivação, a fala e os contextos que pressupomos que a legitimariam. O que é dito em um palco não se mostra como significados absolutos, mas como sentidos disputados, suspensos, abertos pelos canais que passam entre falas, corpos, espaços e públicos.
Creio que se trata nada mais nada menos que de um horizonte incontornável do teatro contemporâneo: mostrar, atravessar e perturbar o horizonte da geleia geral dos discursos (sociais, políticos, culturais) quando giram em falso, muitas vezes fazendo do horizonte uma parede cínica.
Da série infinita de lugares a partir dos quais a fala teatral pode se fundar (como jogo, como performance, como música...), Terra tu pátria escolhe, de início, exatamente esse. Para quem, como eu, tem memória teatral curta, a primeira cena da peça não pode deixar de lembrar Suíte N. 2, de Joris Lacoste, apresentada na MIT de 2018.
Assim como na peça de Lacoste, na primeira cena de Terra tu pátria, os atores são intérpretes musicais, corpos situados, polos de irradiação e reagenciamento dos discursos. Em Suíte N. 2, a excelência do trabalho de atores e tradutores atinge uma belíssima conversão da massa dos discursos em música. No entanto, me parece, a peça estaca justamente no limiar mais arriscado que esse lugar teatral enfrenta, entre fazer girar e reconstruir produtivamente. Na peça de Lacoste tudo é agradável, tudo é risível, tudo gira em falso. A peça não chega a converter o giro em dança, o círculo se fecha em si mesmo.
Em Terra tu pátria acontece algo muito diferente. Além do que já disse, a peça também elege uma espécie de signo-problema extremamente pertinente: aquilo que se costuma ser nomeado como Brasil. Então, junto à dança dos discursos, a peça se dirige ao que, para mim, é outro horizonte absolutamente decisivo: dar a ver e a escutar imagens do trágico eterno retorno brasileiro – mas justamente para furar essas imagens, crivá-las de aberturas. Para ficar em exemplos até certo ponto recentes, vale lembrar que a questão transborda o teatro, por dentro, como em Colônia, ou outros trabalhos instigantes como Festa de inauguração, ou por fora: não poderia deixar de mencionar Bacurau, que vi no dia anterior, mas também trabalhos ainda mais substancialmente múltiplos, como boa parte da produção de um artista como Nuno Ramos.
Fazer os discursos girarem, para atravessá-los em abertura. Apresentar e abrir o Brasil. Terra tu pátria começa assim: os corpos-músicos reconstroem a geleia geral das falas que dão voz à história recente brasileira, jogam o cinismo contra o cinismo, as falsas diferenças contra diferenças por demonstrar. Porém não busca a música pura, mas derrete a sinfonia dos horrores, em um coro plástico e dissoluto, junto com a palavra, signo-problema, Brasil.
Os discursos, o teatro, o teatro, o Brasil. E, de repente... a geleia-geral é revirada, vomitada (não exatamente isso) de volta, ao mesmo tempo que um tropel de bois rasga a branca e falsa serenidade de Brasília. O que o texto abre na câmara escura da escuta do espectador: um anti-obelisco de merda, invertendo, revirando o monumento-palco do discurso cínico, partindo ao meio o Eixo Monumental, rachando o Planalto, rasgando o horizonte de expectativas do espectador.
A partir daí, o lugar do teatro será sucessivamente refundado, até certo ponto, lembrando Festa de inauguração, com atos de inauguração, instauração. Mas é na especificidade das operações realizadas por Terra tu pátria que se pode encontrar sua potência.
Além do corte, mencionado sobre a cena do Planalto: derretimento e remodelagem truncada dos corpos falantes (a questão é decisiva, e volto a ela adiante). Sabotagem discursiva e justaposição de materiais discursivos conflitantes: o 2X0 do Brasil contra a Alemanha em 2002 contra o 7X1, história como tragédia contra a história como farsa. Isso só para citar três operações, que fazem da peça nem um teatro de imagens, nem apenas um teatro de invocação do espaço mental do espectador, nem apenas teatro-performance e, sobretudo, não apenas um teatro que joga as evidências da realidade social contra elas mesmas. Incorporação, derretimento, vazamento de novas potências.
Outro momento de extrema potência: o jogo recua, assume distância analítica, que se projeta sobre duas fotos de Lula sendo carregado pela massa, primeiro homogênea, depois heterogênea, segundos o próprio texto, dos discursos no ABC ao discurso no momento da prisão. Distanciamento, porém não exatamente ou apenas brechtiano, assim como o derretimento do corpo falante é pós – (tênue limiar temporal entre trazer à tona o que veio antes, deixar se imiscuir, consciente ou inconscientemente, com todos os tempos e seguir adiante) – beckettiano.
A partir dessa cena, vamos nos distanciando do Brasil-coisa-dada, em direção à perspectiva dos vagalumes, pontos luminosos de latência histórica e criativa, que encerra a peça. Mas logo seremos reconduzidos, por um movimento inverso, não de retorno ao dado, mas que parece penetrar até onde não se pode penetrar, à carne. A dança dos corpos falantes atinge a carne em convulsão, atravessada tanto pelos discursos, quanto pela irrupção contundente, mas não obtusamente literal, da violência brasileira, que ecoa por muitos lados e tempos.
Outro momento, que junto ao das fotos de Lula, materializa meus dois focos de atenção: um corpo falante situado, feminino e negro, dá corpo de linguagem, reivindica um rastro de nossas conhecidas políticas crônicas de extermínio, registra o extermínio, não apenas seu, quem sabe coletivo.
No entanto, essa reivindicação de rearticulação da palavra ao corpo, que lhe é negada pela condenação ao esquecimento e à invisibilidade, não é um simples habeas corpus (poder dizer este corpo é este corpo, algo que a tortura, por exemplo, sonega à vítima, condenada à condição de carne gritante). O próprio dizer é colocado em um giro de ecos, abafado e mecânico, por meio de um telefone celular que rearticula o que é dito.
Mas, mais que isso, a reconexão do corpo que diz a seu dizer também abre outro horizonte: estou aqui nesta sala, é o que ouvimos, mas o que vemos, é uma voz que cintila em diferentes pontos da escuridão. Voz sem corpo, corpo-voz intermitente, brilho ambíguo. Por trás do giro em falso dos discursos, um turbilhão oculto e violento vêm à tona. Entre presença e ausência, corpo e subjetivação, o corpo falante é derretido e remodelado transitoriamente, convulsivamente multiplicado.
A peça, afinal, não opera no distanciamento com relação à superfície das imagens. Há todo um teatro de corpos e sombras, graças à exploração da relação luz/sombra, figura/fundo e assim por diante. As sombras talvez falem da “contra-imagem” enunciada a certa altura. O que se oculta no que se dá a ver, em ecos, contra-iluminações.
Outra cena: um corpo-carne gritante e dançante recebe, retransmite e recombina três influxos de fala. Discurso, violência, arte, gozo, funk. Aqui sou suspeito para falar, mas não posso deixar de lembrar os últimos trabalhos “teatrais” de Nuno Ramos: o corpos não são mais donos de suas vozes, são polos de atravessamento de falas alheias. Hibridações, atravessamento, vazamento de uma terceira coisa.
Onde a peça opera: não nas imagens que fazemos do mundo e de nós menos; nem nos limites e potências que a linguagem coloca à fala; nem no trauma absoluto e corporal. Mas justamente nas amarrações e desamarrações entre essas três dimensões. (Desculpa a teorização abrupta, mas acho que ela está à altura da singularidade da peça).
Mas, para terminar, voltemos às fotos de Lula, e cheguemos à linguagem. O teatro analisa, corta, retira de sua impressão de unidade estanque as duas cenas em torno desse (até certo ponto) “radical livre” cuja ambiguidade teve que ser encarcerada (Lula). “Qual é o sujeito da foto” de Lula sobre os ombros da multidão? pergunta o texto. Eu não sou um homem, mas uma ideia e vocês todos são Lula: resistir é unificar a massa múltipla de pontos de vista em um ponto de vista supremo?
A peça não se atém a colocar essa pergunta. Ela recorta esse ponto de vista da foto e, assim, faz o que promete, no melhor dos sentidos: a imagem abre-se em olho, outro olho, perspectiva a ser ocupada de múltiplos modos, assim como é múltiplo o público. Um lugar de onde ver de outros modos (im)possíveis. Olho-furo-cu-abertura na bandeira do Brasil?
Enfim, quando a linguagem é materializada no espaço, não resta dúvida: a peça é uma máquina reagenciadora, que explode, abre em múltiplas direções as palavras-coisas-dadas. Brasil, aberto às forças do vazio; Golpe, político, discursivo e feito na carne; Lucciola, em italiano, a cintilância do vagalume, que a peça quer produzir, e simultaneamente “puta”, violência discursiva que a peça quer engolir e devolver.
Vendo a peça um dia depois de Bacurau, não posso não deixar de retornar àquele horizonte artístico contemporâneo que compartilho fortemente. Ambos mostram o Brasil a partir de um “delírio coletivo” (como se lê no texto de apresentação de Terra tu pátria), interpõem uma tela que faz vazar alguma coisa dessa ficção chamada Brasil. Ambos engolem o mal e lançam de volta algo que crie fissuras no eterno retorno do horror brasileiro. (A comparação para por aí, óbvio, a começar por estarmos em um lugar muito diverso da exploração ambígua da identificação, da catarse).
Mas, um pouco como em outros trabalhos que transbordam o teatro, essa relação entre retorno e abertura se faz aqui na chave da multiplicidade. A peça explode os signos que sustentam a reprodução do Brasil. E o que é o signo? A amarração provisória e indecidível da multiplicidade das forças que constituem o mundo em linguagem, em palavras, em “20 centavos”. É como a linguagem permite ver e recolocar o mundo. Um signo é um prisma, um olho encravado nas coisas.
Certos teatros falam de perto com isso. Nascem dos múltiplos encontros entre texto, cena, plasticidade, diversas formas de linguagem, visão e escuta. Entre merda e prisma, uma potência de novos olhos. Vejo tudo isso em Terra tu patria. Terra em trauma. Terra tus ojos.
Notas Sobre Algumas Quebras de Terra Tu Pátria
Pedro Köberle
“Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.”
Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil
Não acho que é um imperativo que se possa impor à ficção a interpretação em tempo real dos acontecimentos. Acho que em nosso tempo de absurdo, cinismo e brutalidade desmedidas, exigir a legibilidade das imagens de horror que o mundo nos apresenta é rebater no fetiche da interpretação. Como se a razão crítica fosse ela mesma veículo de uma libertação. Como se houvesse sempre algum sentido oculto que se “revela”, através da iluminação de suas contradições, como aquilo que é “de verdade”.
Sinto que há uma posição cada vez mais entrincheirada, por parte de intelectuais, artistas, comentadores, quem quer que se meta no corpo-a-corpo com a falta de sentido no mundo hoje, que consiste na obrigação de dizer, na insistência constante de que “há algo para ser lido aqui”, “há um sentido oculto”, “há uma forma verdadeira”, que a intuição crítica ou as obras de arte críticas devem esclarecer para garantir sua relevância. Como se responder ao jorro incessante de significantes vazios da política institucional e da opinião pública só fosse possível na medida de um outro jorro de significantes quase tão murchos quanto aqueles que buscam rebater.
Mas acho admirável, mesmo, que se façam obras situadas ali na viração do Momento Atual Em Que Vivemos, ainda quem em Terra Tu Pátria fique claro o tanto de desvio que já existe nos, vai, cinco últimos anos. Acho que tem uma coragem no gesto de dobrar o contemporâneo sobre o ficcional, em abordar o litoral de sentido entre a ficção política e a política da ficção.
Por ficção política entendo esse enorme aparato de enunciados que agenciam as formações de poder e os mecanismos de legitimação do discurso. Aquele pacto ficcional em que consentimos que sim, há a democracia, que há o povo como categoria operante, que as palavras ditas em reuniões do congresso correspondem, sim, às situações de que tratam. A ficção política parece um enxerto no espaço vazio entre dizer e fazer. Aquilo que se ergue, bem ou mal, contra a inoperância.
A política da ficção é um problema a parte, sugere uma questão ética, usada aqui um pouco em negativo, no sentido de um pensamento que dá a Terra Tu Pátria os mecanismos para pensar sua própria impotência. Me parece existir uma política da ficção quando confrontamos a saturação ilegível do contemporâneo com uma operação de desmonte ou desarticulação promovida por um objeto ficcional. Quando denunciamos o dano que se insinua por trás de toda maquinação do Estado. As confusões de voz das figuras cinzentas no palco sobrepostas aos altos brados da votação do impeachment de Dilma Rousseff.
Acrescenta-se à saturação sonora e discursiva da câmara dos deputados uma outra saturação, distinta, dos atores em exaustivas repetições e microvariações de conteúdo verbal. Na peça, o gesto consiste em responder à música oficialesca, gabinetista e menestrélica da política institucional brasileira com uma música igualmente abrasiva, tornada gestão minuciosa do ruído, onde a nota é o controle do grito.
Dinâmica médico-monstro em que o Lado Doutor tropeça na deformidade de sua filiação genocida e escravocrata no Brasil Fazendão de Quinhentos Anos.
A terra tropeça na pátria, seu reverso patriarcal, estatal, assassino e beligerante. A terra, eu acho, não é a natureza, mas o campo das possibilidades políticas e espaciais de que uma comunidade dispõe. A pátria é o afunilamento policial dessas possibilidades e a simetrização forçada das diferenças. Dispenso os comentários sobre a relação etimológica pai-pátria, explorada de maneira a ser associada à ausência da figura paterna pela própria peça. Basta dizer que se pai e pátria fundam esse sentido unívoco, autoritário e despótico, fundam-se também no mesmo instante as condições de sua ausência.
Se me permitirem a longa citação, gostaria de reproduzir algumas palavras de Jacques Rancière acerca do “reino do direito” ao qual considero que pertence a pátria, assim concebida no múltiplo de suas acepções:
Mas o reino do direito é sempre o reino de um direito, isto é, de um regime de unidade de todos os sentidos do direito, colocado como regime de identidade da comunidade. Hoje a identificação entre democracia e Estado de direito serve para produzir um regime de identidade a si da comunidade, para fazer desaparecer a política sob um conceito do direito que a identifica ao espírito da comunidade.
Eu entendo o que Rancière escreve como a constatação de que a democracia, assim equivalente à sua efetuação por um Estado de Direito, só pode aparecer como a ficção de identidade de uma comunidade, como a argamassa que une os seus componentes ao mesmo tempo em que dissimula a política (não a institucional) que há por trás dessa unificação. Esclareço o que entendo da referência de Rancière à “identidade a si” da comunidade: isto é, o entendimento consensual e socialmente distribuído de que a comunidade que participa das tomadas de decisões políticas não constitui uma comunidade separada daquela que padece dos efeitos dessas decisões. A ficção assassina de que o Brasil é a pátria grande, a pseudomaloca da Havan em que políticos e favelados participam da mesma realidade comum.
Daí que a peça se encaminhe logo a desarticular os componentes da máquina, secar a graxa que permite às engrenagens do Estado produzir sua aparente solidez. A peça desce (ou sobe, tanto faz) ao nível do corpo, ao nível em que corpo e palavra coincidem, e é aqui que quero me deter um pouco. Se me permitirem mais uma frase meio categórica: em Terra Tu Pátria, fratura corporal e rasura vocal são as modalidades de sentido pelas quais o espaço dramático denuncia a violência dos processos traumatopolíticos dos últimos anos.
O longo poema-partitura-extrato-dos-autos do início da peça, em que as pequenas distâncias temporais entre as frases, os blocos verbais declamados, vão inserindo progressivamente defasagens em relação a uma batida fixa. Assistimos à lenta dissolução do metro, à proliferação de microrritmos e colisões sonoras. São essas que eu chamo de rasuras vocais, em que um som se sobrepõe a outro e o texto é sobreposto a outro sem que deixemos de perceber o que está por baixo. Cada uma é uma pequena eclipse do sentido que “quebra o discurso pra fazer emergir a fala”, como diz Lacan.
Diria que a rasura vocal se estabelece quando se insere a gagueira no âmago de uma linguagem, quando alguém engasga na própria voz.
Acho que aqui cabe também outra observação que me ocorre: nessa desarticulação do sentido, nessa fala que emerge, o que pescamos do que é dito acaba por montar um discurso impossível, em que apoiadores e opositores do golpe compartilham do mesmo estatuto de absurdo. As consequências políticas dessa relação posta em cena são mais do que óbvias no já exausto (ou natimorto) debate acerca da exasperação inarticulada dos dois polos mutuamente determinados ao redor dos quais insistimos em fazer dançar a comunidade. Terra Tu Pátria propõe: a única dança possível, aliás, é a convulsão.
Feitos os comentários sobre a rasura vocal, gostaria de esclarecer também o que chamei de fratura corporal. Os corpos dos atores, quando não adotam uma posição hierática de instrumento (como na leitura dos pronunciamentos oficiais) ou a retórica da locução jornalística e da explicação didática (como na narração do episódio dos bois no congresso e na cena, menos potente, de análise de fotografias) sugerem tanto as torções expressivas-expressionistas do butô quanto a austeridade cotidiana-mecânica do Café Müller de Pina Bausch. Aquela saturação sonora e verbal da peça torna-se uma crueza em tons de cinza no nível do figurino, que disfarça camiseta rasgada embaixo de paletó, no esmaecido das silhuetas dissimuladas atrás dos cortes retos.
Um corpo em cena que é uma ou várias vozes. Um corpo em cena que recebe mensagens conflitantes de um celular, numa espécie de tradução simultânea devindo curto-circuito verbal e fisiológico: acomodar as vozes de Jair Bolsonaro e de Linn da Quebrada numa mesma boca não produziria nenhum resultado senão a expressão devastada, a saliva escapando com cada vociferação. A feição fotofóbica do ator atesta: o corpo torna-se o meio de passagem de duas vozes irreconciliáveis, e se exaure nessa passagem. Se o fundamento da rasura vocal é a gagueira, o da fratura corporal é a cãibra. Em Terra Tu Pátria cãimbra é posição de descanso.
Na cena das palavras projetadas ganhando consistência na fumaça aprendemos que mutilam-se as palavras tanto quanto os corpos.
O movimento centrípeto dos corpos na célebre foto do Lula no Sindicato dos Metalúrgicos se distorce numa violenta excreção centrífuga, correspondente à violenta excreção de jato de merda do ânus de Michel Temer, na referida cena dos bois no congresso. O ex-presidente devém buraco negro tentacular e o apagamento de sua figura no centro conduz à desagregação total do sistema, à posição vazia que, como um aterro ou um buraco negro, não nos devolve nenhuma direção. Nenhuma força exerce a atração necessária para manter os corpos em disposição estável.
Quando escrevi acima sobre devolver a uma saturação uma saturação de outra ordem, não deixei claro que considero responder à saturação do mundo com o seu esburacamento pela linguagem, como faz um Beckett, uma alternativa ético-estética igualmente poderosa. Terra Tu Pátria, no entanto, vai por outro caminho. Poderia elaborar uma dramaturgia, ancorada numa boa-vontade militante, que resolve os conflitos em noções de pertença e exclusão, construindo o Inimigo como uma totalidade situada lá do lado deles. Poderia ainda “dialetizar” esse movimento de exclusão e pertença através dos (a meu ver) exaustos tropismos da interpretação brasileira do teatro épico brechtiano. Mas prefere outro caminho, insinua o inimigo por trás do companheiro conforme assinala o lugar dos dois no mesmo campo, aquele da linguagem e de sua inoperância. Não vejo nenhuma síntese dialética (nem diálogo, literal ou figurado), em Terra Tu Pátria, mas conexões parciais, eclipses em que dois termos contraditórios não se resolvem num terceiro mas deixam seus rastros um sobre o outro.
Nessa cenografia de contágio mútuo entre termos opostos, aparece que o povo não coincide com si mesmo, ou que é ele, assim como o pai, aquilo que falta, mas segundo operacionalidades distintas. Terra Tu Pátria tenta outro caminho.
Devolve ao absurdo da dramaturgia política brasileira, aos delegadinhos, juizolas e deputados-capacho, que urram e bradam seus bordões bacharelescos pseudoarticulados carregados da incestuosidade cognitiva das neopentecostais, uma outra confusão de vozes, uma outra sobreposição de sons inarticulados, servindo a outro propósito, diametralmente oposto: produzir por fratura, rasura, gagueira e cãimbra, uma cenografia que faz aparecer a comunidade (tanto como espaço coletivo quanto como condição desse coletivo) como uma disposição convulsiva de integrantes de um conflito.
Falo de Terra Tu Pátria gramaticalmente: essa construção sem sujeito nem objeto, cujas palavras parecem mais chocar-se umas com as outras do que entrar em comunhão. Temos o “tu”, ali, como eixo acusativo, apontando ou pra terra ou pra pátria. Terra é tu, pátria. Terra: Tu, Pátria. Tu não é “tua”, lembramos, conforme vão se multiplicando os equívocos entre a terra e o seu esquadrinhamento sem que tenhamos posse ou propriedade de qualquer pedaço da partilha.
De tanto navegar entre as rasuras, ramificações e gaguejadas do sentido e do som na peça, acabamos produzindo, por nós mesmos, aquilo a que as artes verbais (nisso incluo o teatro, o poema...) podem aspirar de mais significativo, pra mim: uma educação da atenção.